Mostrar mensagens com a etiqueta Pacheco Pereira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Pacheco Pereira. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Os amanhãs que cantam

"Há uma obscena falta de vergonha incrustada no texto da moção de confiança que o Governo vai apresentar e que, por si só, é um retrato de uma política que, após as ingenuidades e ignorâncias iniciais, tem sido feita pelo dolo, para a manipulação e para o engano. Que haja intelectuais por detrás desta mistificação, faz-me confirmar uma velha desconfiança quanto à corrupção que a ambição traz ao pensamento. E mais: com esta moção, todos os membros do Governo passam a ser versões de Paulo Portas e a reverem-se no modelo de duplicidade sobrevivente do "irrevogável".

O que esta moção nos diz é uma completa mistificação desde a primeira letra. Diz-nos que havia um ciclo político pensado em duas fases: uma, o cumprimento do "programa", outra, o desenvolvimento e o crescimento. A crise governativa das últimas semanas foi o rito de passagem, a perda da pele da serpente, que permitiu abandonar a velha pele, para fazer reluzir a segunda. Ou seja, ainda bem que houve esta crise, catártica na sua bondade, para podermos, limpos e lustrais, apresentar um "novo ciclo" aos portugueses. Nada disto é verdade, nem o "programa" foi cumprido, bem longe disso, nem este "novo ciclo" estava previsto nestes termos na programação governativa, nem as vítimas da "austeridade" podem esperar qualquer alívio, nem as vítimas que se seguem, as da "reforma do Estado", podem escapar à desvalorização do seu trabalho e ao desemprego. O programa real continua, o virtual vem aí. Só que não é para os mesmos.

Cumpriu-se o "programa", apesar de nenhum dos números do défice e da dívida ter sido atingido? Podemos "regressar aos mercados"? Obtiveram-se os resultados miraculosos do "ajustamento"? Bem pelo contrário, o que Passos, Gaspar, Moedas e outros pensavam, em completa consonância com a troika, é que após uma varredela para o lixo da economia "ultrapassada", após o desmantelamento do Estado social, após a inversão das relações de poder na legislação laboral, após o fim dos "direitos adquiridos", depois da "libertação" da sociedade do Estado, após o "ajustamento" dos portugueses a viverem "de acordo com as suas posses", muito poucas, aliás, a economia exportadora, a economia desenvolvida tecnologicamente, a sociedade dinâmica dos "empreendedores" esmagasse os "piegas", sem que o Estado tivesse qualquer outro papel do que garantir a ordem pública e a hierarquia social estabelecida. O "arranque" viria da sociedade "libertada", e nunca jamais, em tempo algum, o Estado voltaria a ser "desenvolvimentista". 

Ora isto não aconteceu, nem podia acontecer, houve demasiadas "surpresas" e estes homens ficaram presos nas ruínas do seu discurso, arrastando-o, já não para construir o seu modelo utópico, mas para encobrir e remediar os estragos do que tinham feito. Já há algum tempo que as medidas sucessivas de austeridade se destinam não a qualquer "ajustamento", mas a tapar a ineficácia das anteriores. Gaspar percebeu isto e percebeu que o primeiro-ministro já estava a hesitar com o partido e eleições, e como precisava de uma determinação absoluta, foi-se embora. 

Passos ficou no ar, entre um discurso cuja simplicidade e "economês", feito de algumas leituras sobre Singapura, lhe era atractivo e as pressões partidárias e atribulações governativas. Continua no ar, lançando mais confusão do que clareza -, o discurso partidário de ruptura das conversações é o oposto do texto da moção de confiança e só passou uma semana - mas, como sempre disse, nunca me convenceram pessoas que se tornam ideólogos de uma coisa, quando essa coisa está na moda. E por isso, o Passos desenvolvimentista e socrático contra Manuela Ferreira Leite pode regressar a qualquer momento, até porque não foi assim há muito tempo. 

Não é hoje tão fácil fazer estas inflexões quando se tem o lastro dos desastres cometidos, mas não é impossível. No fundo, todos eles são Paulo Portas. A verdade é que Passos aprovou uma moção de confiança que, se tomada a sério, é uma crítica dura aos seus desvarios de engenharia utópica. Substituir Gaspar por Maduro, ambos tendo influência por via da insegurança académica de Passos, a mesma que o faz entrar mudo e sair calado dos Conselhos Europeus, pode ser reconfortante como mentor, mas não chega. E, por isso, o discurso governamental vai-nos dizer à saciedade que saímos de uma encruzilhada "má" para uma estrada "boa". Com a capacidade que tem a comunicação social para reproduzir a linguagem do poder, esta propaganda vai ser repetida sem prudência. Até ao dia em que tombará e o contrário será a norma. Tem sido sempre assim, com Sócrates e Passos, não vai ser diferente.

Claro que haverá algumas "medidas", nos impostos para as empresas, no IVA da restauração, na concertação social, com uma UGT desejosa de voltar ao "consenso", com um PS cujo compromisso real com este "novo ciclo" desconhecemos. E vamos admitir que há mesmo "sinais" de alguma recuperação da economia, como nos diz a propaganda governamental, seleccionando para o efeito os indicadores positivos e não falando dos negativos. Vamos admitir que estamos na véspera de uma "mudança", de "uma segunda oportunidade", de "uma nova fase". Vamos admitir isso tudo, mas não vamos admitir que nos digam que isso significa o que nos querem dizer que significa.

Vamos admitir que o "pior já passou", mesmo que se trate apenas de bater no fundo. Claro que há-de haver uma altura - não sei se ainda esta -, em que, estando tudo mal, já não se pode piorar. Na verdade, não é bem assim, pode-se sempre piorar, basta a passagem do tempo para o fazer. Um ano de empobrecimento não é a mesma coisa que três e quatro, e estar desempregado a única dinâmica que conhece é o passar do tempo, para pior.

Olhando estes "sinais", as perguntas que temos que fazer são duas. Uma, o que é que ficou para trás destruído sem recuperação, cujos restos estão por todo o lado, e como é que eles vão envenenar o presente e o futuro? Outra, bem mais importante e "subversiva", é que, se houver "recuperação", quem é que dela beneficia? A resposta politicamente correcta é que beneficia a todos. A resposta verdadeira é que a poucos, muito poucos, e aos mesmos de sempre. Talvez umas migalhas cheguem aos de baixo, ou nem isso, porque eles podiam lembrar-se de comprar electrodomésticos e lá se vão os números das importações.

Numa sociedade em que se agravaram os factores de exclusão e em que uma parte importante - classe média, desempregados, "novos pobres", mundo do trabalho desprotegido - perdeu todo o poder, os frutos de qualquer tímida "recuperação" seguirão as linhas de água profunda cavadas pela ruptura social na sociedade portuguesa e correrão para onde sempre correram. 

Este óbvio facto, de que ninguém que levou com a "crise" em cima vai beneficiar dos "sinais" em tempo da sua vida, é ocultado por um discurso político que foi reduzido nestes últimos anos ao "economês". Esse discurso não se vai embora apenas porque passamos a ter uma retórica política que fala do "crescimento" em vez do "rigor orçamental". Bem pelo contrário, pode até reforçar-se, moldando o modo como se vai ver a "recuperação" e os seus frutos, legitimando a continuação da austeridade para os mesmos e "libertando" alguns de impostos, regulações, limitações, leis. Leis, no limite da Constituição, um dos programas escondidos das "negociações" com o PS. 

O "novo ciclo" do Governo, naquilo que não é pura sobrevivência eleitoral, mas discurso de feiticeiro, serve para reciclar a linguagem do poder aos mesmos interesses de sempre. Mas a sua fragilidade é a mesma do discurso do "rigor orçamental". É mais agradável de ouvir, mais enleante, leva o PS à ilharga, foge da agressividade militante da engenharia utópica Passos-Gaspar, mas destina-se a manter o mesmo círculo de ferro que captura a democracia portuguesa por um establishment financeiro e de grandes empresas nacionais (cada vez menos) e estrangeiras, e de uma elite que aceita servi-las e aceita os seus limites de fogo daquilo que se pode ou não fazer. 

Visto de longe, sanitariamente de longe, este Governo, para se manter, fez todos os tratos com Cassandra e abriu todas as caixas de Pandora. É só esperar pelos resultados do "novo ciclo"."

quarta-feira, 3 de julho de 2013

O navio fantasma

"Querer manter a todo o custo o governo em funções é a pior estratégia para os interesses nacionais face "aos nossos credores". Não o perceber é típico da actual incompetência institucionalizada. Se Passos Coelho pensa que faz a ferro e fogo um "ajustamento" contra tudo e contra todos e que é isso que "os nossos credores" querem, está completamente enganado. Não só "os nossos credores" não confiam hoje na sua capacidade política de o fazer, como, depois da situação criada pela dupla demissão de Gaspar e Portas, os "nossos credores" o que vão exigir é que os três partidos PSD, CDS e PS façam um novo acordo.

As condições políticas para esse acordo não existem sem eleições, e ninguém imagina que o CDS e o PS possam hoje ter vontade política para fazer esse acordo, durante a troika e no pós-troika. E um governo isolado, bloqueado e a cair aos bocados, é a última coisa que pode acalmar os "nossos credores". Amanhã eles já estarão noutra, mesmo que não o digam. Por cá, a cegueira funciona assim."


José Pacheco Pereira in Abrupto

terça-feira, 14 de maio de 2013

O Guignol

No início do século XIX apareceu em Lyon um nova versão do teatro de marionetes com uma personagem central que deu o nome à cena: Guignol. Muitas das suas personagens são idênticas às da Commedia dell"Arte italiana e incluem variantes do Arlequim, do Polichinelo, uns criados oportunistas, uns "burgueses", um militar façanhudo, um polícia e vários ladrões, uns ingénuos e uns espertos, umas damas de virtude assanhada e outras de costumes fáceis, etc., etc. A actividade mais popular no Guignol é a pancadaria, sendo que a cabeça dos bonecos tem sempre que ser feita de madeira dura para permitir a repetida cena de uma ou várias personagens andarem com um pau a bater na cabeça uns dos outros. Se se quiser dizer em português, o Guignol é uma fantochada.

A imagem do Guignol, cujas variantes nacionais ainda estão nas minhas memórias de infância, perseguiu-me toda a semana passada enquanto assistia ao espectáculo dado pelas sucessivas declarações de Passos Coelho e Paulo Portas, os arrufos e as declarações de amor perpétuo, os elogios da corte de servidores, a admiração dos jornalistas e comentadores com a supina inteligência de um e a incompetência "mediática" do outro, num jogo de cena penoso de se ver, diante de milhões de pessoas a empobrecer, desempregadas, ameaçadas nos seus direitos mais básicos, velhos sem qualquer alternativa atirados aos cães da "convergência das pensões". Era Guignol do mais perfeito: pauladas, tiradas retóricas, choros e arrependimentos, mentiras e maldades. 

A sequência rápida destas últimas semanas diz tudo sobre como estamos. Comecemos pelo chumbo do Tribunal Constitucional, seguida das declarações de fúria governamental, da cena de silêncio e ida a Belém (porquê?), do despacho vingador de Vítor Gaspar, que continua em vigor e ninguém aplica porque é impraticável; das fugas de informação de que as reuniões do Conselho de Ministros são campos de batalha entre facções do Governo, detalhadamente contadas ao Expresso, a Marques Mendes, a Marcelo, a qualquer órgão de informação que queira saber; do discurso autocastrador de Cavaco Silva no 25 de Abril; do plano abstracto de "fomento industrial", anunciado com tanta pompa quanto o vazio de concretização, por uma facção do Governo ligada ao "crescimento"; da Assembleia informada de que terá direito a ver um documento essencial para o futuro do país, "uns minutinhos antes" de Bruxelas; da Assembleia informada de que pode discutir os créditos swap, mas que o acesso ao relatório que iliba a secretária de Estado (e feito sob sua direcção) permanece "confidencial"; do Documento de Estratégia Orçamental apresentado pela outra facção do Governo, a do "rigor orçamental", da ordem do imaginário (e aprovado por Portas que também o acha "irrealista"), dos anúncios sobre anúncios que não anunciam nada, do "será para depois de amanhã", "afinal os pormenores serão só para depois", etc., etc. "Menus de propostas", uma ridícula denominação, de vários tipos: anunciadas; anunciadas mas vetadas por outro ministro do mesmo Governo; anunciadas mas "abertas" para se cumprir o ritual da concertação social, e o novo ritual do "consenso"; propostas "equacionadas"; propostas que quando dão torto passam a "hipóteses" de trabalho (sendo que os números divulgados noutros documentos de "poupanças" são as das "hipóteses" e não as das propostas...), propostas em versão A e B e C, mudadas no espaço de uma semana; propostas terroristas passadas em fugas à comunicação social para ver no que dá e para depois vir o Governo congratular-se por afinal não ir fazer tão mal aos cidadãos como tinha "soprado" a uma imprensa que publica tudo; não-propostas e antipropostas da ordem da matéria negra e da antimatéria. Alguém me sabe ou pode dizer, a uma semana do seu anúncio, que medidas estão efectivamente decididas? Ninguém.

O "menu de propostas" parece aqueles menus desleixados em que uma cruz significa que o prato já não há, e depois, quando se pede outro, já não há os ingredientes e é melhor escolher o que não se tinha escolhido; ou aqueles menus dos restaurantes de luxo em que um palavreado destinado a épater le bourgeois, como "emulsão de chouriço", "vinagrete de citrinos" ou "sardinha em seu suco", ocultam pouco mais do que uma folha de alface comAceto Balsamico de Modena feito na Bairrada. E quanto aos preços do "menu" não há um único que bata certo. Os do Documento de Estratégia Orçamental não são os mesmos dos de Passos Coelho, nem os de Portas, nem os da contabilidade do "menu de medidas", nem os do secretário de Estado Rosalino, nem os que são dados nas reuniões de concertação social. São todos em milhares de milhões de euros, mas nada bate certo e não é só nas previsões, é nos números com que se parte para as previsões. 

Depois há o uso cada vez mais ofensivo da instabilidade, da chantagem e do medo para pôr as pessoas na ordem. Veja-se o que se passa com os despedimentos da função pública, que, se o Governo pudesse sem violação da lei e da Constituição, seriam às dezenas de milhares, amanhã mesmo. Mas como não pode, usa-se uma combinação de chantagem - as rescisões "por mútuo acordo" - com a colocação de milhares de trabalhadores na absurda (e ilegal) situação de manterem um vínculo ao Estado sem receberem um tostão de salário. E como o Governo percebeu que talvez, mesmo apesar dos inconvenientes pessoais da chamada "mobilidade especial", pudesse haver um número significativo de funcionários que a pudessem aceitar em desespero de causa, e como o objectivo, por detrás dessa tralha verbal tecnocrática, é só despedir, vem agora dizer que "precisamos de transformar o Sistema de Mobilidade Especial num novo Sistema de Requalificação da Administração Pública, com o objectivo de promover a requalificação dos trabalhadores em funções públicas, através de ações de formação". Poderíamos dizer que teria havido um progresso, visto que se pretendia apenas "requalificar" os trabalhadores. Mas se é assim por que é que a frase seguinte é "... e da introdução de um período máximo de 18 meses de permanência nessa condição, pois não é justo para a pessoa, nem é boa administração do Estado, perpetuar uma situação remuneratória que já não tem justificação laboral", ou seja "requalificar" significa despedir? Estes jogos de palavras orwellianos são tão habituais neste Governo como respirar. E eles estão ofegantes.

É uma descrição dura e desapiedada a que faço? Ainda me parece mole e meiga, porque a dimensão de Guignol, de engano, de dolo, de nos querer tomar por tolos, é compulsiva. Não é para levar a sério, mas é muito sério. É muito sério porque disto tudo fica um resíduo, um rasto, uma saliva marcando as paredes, uma babugem qualquer, de medidas, ordens avulsas, leis e directivas, despachos que destroem sem sentido a vida a muitas pessoas que estão a pagar um tributo demasiado caro à vaidade do dr. Portas, ao profetismo ignorante de Passos Coelho, à obstinação tecnocrática de Gaspar, ao servilismo dos deputados do PSD e do CDS, e à cumplicidade de muitos interesses. Esse tributo, que vai ser inútil porque dele não virá qualquer adquirido para os problemas do país, torna este Guignol criminoso. 

E não me venham com desculpas, nada disto tem a ver com o facto de haver uma coligação, nada disto mostra inteligência, mas apenas esperteza, nada disto mostra qualquer preocupação com o país, mas apenas instinto de sobrevivência eleitoral, nada disto mostra qualquer sentido de Estado mas apenas truques de imagem mediáticos, nada disto tem a ver com Portugal nem com os portugueses, mas com um sistema político corrompido pela sua ruptura com o povo e a nação. Guignol por Guignol prefiro o verdadeiro."

O "memorando era o programa do PSD", como disse Passos Coelho, impante da sua importância e papel como sendo aquele que iria mudar a face do país, da economia, o grande modernizador, que iria combater os "vícios do passado" e os maus hábitos dos portugueses, cheios de direitos e "pieguice". O conteúdo das suas declarações iniciais, utópicas e proféticas, encontrou em Gaspar o típico executor burocrático que era suposto trazer a eficácia da tecnocracia para a prossecução da "revolução". Gaspar acabou por ser o Mestre e não o Executor, mas isso também era previsível. 

As opções radicais, milenares e proféticas, implicaram um excesso de zelo e uma pressa de rolo compressor, tentando esmagar a "velha" economia e os "velhos" hábitos o mais rápido e violentamente possível, para depois, sobre as ruínas, se erguer o Portugal disciplinado, competitivo e alemão. Por isso, nenhum acordo com o PS, nenhum sério envolvimento dos parceiros sociais, nenhum esforço de "consenso" tinham sentido. Era um programa para os fiéis sem dúvidas, obstinados e cegos a tudo o que não fosse o "ir para além da troika", "custe o que custar". E os fracos como o PS, os sindicatos e mesmo as confederações patronais, tinham de ser postos à margem porque não eram confiáveis. Ficavam apenas, dentro do círculo do poder, o sector financeiro, e a elite dos "sempre os mesmos", que circulavam de governo para governo, da banca, das consultoras financeiras e dos grandes escritórios de advogados. Mas isso era natural, porque o "programa" da troika e de Passos Coelho era o deles. "

José Pacheco Pereira

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Viagem no passado por causa do presente

"Hoje tudo é muito diferente em relação ao passado, mas também muita coisa é demasiadamente igual.

No final do século XIX, princípio do século XX, o incipiente operariado português concentrava-se em poucas fábricas dignas desse nome no Norte do país, em particular no Porto, e numa multidão de pequenas oficinas em Lisboa e Setúbal e nas principais cidades do país. Eram operários e operárias, tabaqueiros, têxteis, soldadores, conserveiros, corticeiros, mineiros, padeiros, alfaiates, costureiras, cinzeladores, cortadores de carnes verdes, carpinteiros, fragateiros, estivadores, carregadores, carrejonas no Porto, carvoeiros, costureiras, douradores, etc., etc. Havia uma multidão de criados e criadas, criadas "de servir", e muito trabalho infantil em todas as profissões, em particular nas mercearias, onde os marçanos viviam uma infância muitas vezes brutal, dormindo na loja e carregando com cargas muito pesadas. Falei em operariado, mas na verdade, muito poucos correspondem ao conceito, porque se trata mais de artífices, trabalhadores indiscriminados, e em muitos casos com profissões hierarquizadas em que os aprendizes eram sujeitos a todos os abusos. Havia depois uma aristocracia operária, essencialmente entre os que faziam tarefas qualificadas e mais bem pagas, como era o caso dos tipógrafos, que sabiam ler e por isso tinham um mundo social diferente. Antero de Quental foi tipógrafo de passagem.

Deixo o campo de lado, em que a maioria dos portugueses ainda vivia, onde havia igualmente um território obscuro e pouco conhecido que despertou com a I República, os trabalhadores rurais alentejanos. Estes viviam uma vida violenta e esquecida no meio do deserto alentejano. Nos meios rurais vários grupos de trabalhadores vegetavam na mais negra miséria e vendiam o seu trabalho sazonalmente, nas vinhas do Douro, nos campos do Alentejo e Ribatejo como maltezes e ratinhos. O que de mau se pode dizer das cidades, pode-se dizer pior do campo ou das vilas piscatórias do litoral e mineiras do interior. 

A economia do mundo operário centrava-se no salário muito escasso, na renda de casa, numa vila operária ou numa "ilha" se fosse no Norte do país, onde se amontoavam em condições higiénicas e sanitárias inimagináveis. A epidemia de cólera no Porto, e a habitual ocorrência de tifo, demoraram muito anos a lembrar os governantes do problema de insalubridade da "habitação operária" e deram origem aos bairros sociais no salazarismo.

O vestuário masculino e feminino era muito grosseiro, sarja, serapilheira, chita eram comuns e os sapatos eram para usar aos domingos. Até à década de cinquenta do século XX o pé descalço era um símbolo da pobreza portuguesa. Alpergatas feitas com um bloco de madeira e uma tira de borracha de pneu eram o calçado operário mais comum. As mulheres vestiam-se ainda como se estivessem no campo e os homens já menos, mas mesmo assim o traje operário, como o fato-macaco, demorou a tornar-se comum porque era caro.

A alimentação era de péssima qualidade e a fome, e doenças associadas com as carências alimentares, como o raquitismo, eram comuns. A tuberculose era generalizada, e o alcoolismo um flagelo social. Eram igualmente comuns os traços da varíola, da poliomielite, e em certas zonas do país havia malária e kala-azar. Não havia dinheiro para ir ao médico e também não havia muitos médicos e menos hospitais, já para não falar de medicamentos. A dependência da caridade da igreja ou pública, sob formas como a "sopa dos pobres", implicava regras de comportamento disciplinares, subserviência e cabeça baixa. Havia muita mendicidade.

A prostituição, a criminalidade e o roubo eram generalizados. Havia um número elevado de "matriculadas" e um número ainda maior de mulheres que se prestavam ocasionalmente à prostituição por razões económicas. A violência sexual nas fábricas era uma forma de "direito de pernada" que ninguém contestava e a violência nas famílias sobre as mulheres uma hábito estabelecido. Em Lisboa a criminalidade "apache" de navalha, vinho e fado era a regra, nos campos o assassínio bruto à paulada e a machado associava-se ao roubo nos matos e ao incêndio de searas. A reivindicação de polícia rural está alta na lista de todas as associações de agricultores, como os senhorios urbanos temiam os seus inquilinos.

A esmagadora maioria da população era analfabeta, e os poucos que tinham algumas letras não passavam da instrução primária, muitas vezes incompleta. No entanto, havia uma reverência à escola e à instrução, como sinal de ascensão social. Para muitos pobres, o seminário era a única escola possível.

Os trabalhadores não tinham quaisquer direitos enquanto trabalhadores. Os patrões, fossem os "industriais" com dinheiro brasileiro e títulos de barão e visconde, ou os donos das pequenas oficinas de marcenaria ou de panificação, podiam decidir tudo sobre os seus trabalhadores. Os horários podiam ser de sol a sol, as condições de trabalho eram terríveis, os acidentes de trabalho e as doenças profissionais comuns, as ordens de patrões e capatazes eram indiscutíveis, os dias de doença não eram pagos, as faltas, por muito justificadas que fossem, idem, e o despedimento não tinha qualquer formalidade - chamava-se o trabalhador e "punha-se na rua". Ponto.

Durante a segunda metade do século XIX, os operários começaram a organizar-se e a reivindicar alguns muito escassos direitos. À medida que as antigas corporações desapareciam, e com estas algumas confrarias que ofereciam um escasso apoio social a grupos profissionais, apareciam associações mutualistas que pretendiam em primeiro lugar garantir um funeral decente em vez da carreta dos pobres e a vala comum, assim como algum apoio às viúvas e aos filhos, que a morte deixava de imediato na pobreza absoluta. Os peditórios eram comuns. Esse mundo da economia popular pode ser visto por um observador atento que visite alguns bairros antigos de Lisboa, onde encontra ainda restos da paisagem operária marcada pelas lojas de penhor, pelas funerárias e pelas tabernas.

Os sindicatos, no sentido moderno do termo, surgiram a partir das associações de classe e de um espírito de resistência e auto-organização, que, não sendo nunca muito forte, estabeleceu-se com tenacidade. Havia greves, algumas violentas e tumultuárias, mas também era comum que um gesto qualquer caritativo do patrão fizesse voltar os operários ao trabalho, muito agradecidos com a benesse. A relação paternal entre o patrão e os "seus" operários estava incrustada no tipo de relações sociais dominadas pela clientela e pelo patrocinato. O caciquismo era a face política dessas mesmas relações, a partidocracia actual a sua herdeira.
Do seu lado, do lado das "classes laboriosas", havia muito pouca gente, alguns raros filantropos com ideias progressistas, muitos filantropos com ideias reacionárias, e, durante a sua breve vida, um Rei D. Pedro V. E, pouco a pouco, legislação sobre o trabalho, as condições de trabalho, a "previdência", e um embrião de um direito laboral foi fixando horários, salários, regras, descontos, faltas, doenças, obrigações, e, palavra maldita, do direito nasceram direitos adquiridos.

Estamos a falar de cem, cento e cinquenta anos, mas saímos deste mundo há pouco mais de cinco décadas, com muito sofrimento, esforço e trabalho, consolidando melhorias e direitos. Na década de sessenta, a vida começou a melhorar muito lentamente. A emigração representou a válvula de escape para muita desta miséria, e na França, na Alemanha, como antes no Brasil e Venezuela. Uma lenta mas construtiva industrialização, iniciada nos anos cinquenta, e uma política de "fomento" permitiram, junto com a economia colonial acicatada pela guerra, algum progresso material. E Marcelo Caetano deu a reforma aos rurais e o 25 de Abril o resto. 

Foi um processo lento e nalguns aspectos pouco amável, que incluiu uma revolução e alguma violência, cá e principalmente em África. Conseguimos uma muito razoável integração dos "retornados", mais eficaz pela plasticidade da sociedade portuguesa do que o que aconteceu em França com os pieds noirs. Acabámos com os frutos malditos da pilha de ouro entesourada no Banco de Portugal, a mortalidade infantil, o analfabetismo, a pobreza, a absoluta desprotecção face aos infortúnios do trabalho e da vida.
Melhorámos alguma coisa, mas não muito. Mas foi tudo muito lento e muito tarde, o que significa que os portugueses mais velhos ainda têm uma memória viva, muito provavelmente biográfica, desta pobreza ancestral. Mesmo os que já não a viveram sabiam pelos seus pais e avós que era assim, e isso significa, ao mesmo tempo, um certo conformismo e alguma revolta.

O último tempo onde mais negra foi a miséria portuguesa que ainda pode ser lembrado pelos vivos foi por volta de 1943, o ano em que houve um excedente da balança comercial que a imbecil ignorância actual se permite louvar, sem saber do que está a falar. Ter havido excedentes na balança foi bom, a razão por que isso aconteceu foi péssima. É essa fractura entre a abstração e a realidade que torna obrigatório viajar pelo passado por causa do presente. Tudo é muito diferente, mas também muita coisa é demasiadamente igual. Esperemos que em 2013 não se torne ainda mais parecida."

domingo, 7 de outubro de 2012

O Fim

"A situação é parecida com a dos últimos dias do Governo Santana Lopes. Parecida, mas longe, muito longe de ser igual. É muito mais grave, mais profunda, e sem aparente saída política de curto prazo em eleições, como acontecia em 2005. Um tempo político acabou em Setembro de 2012, que durava desde o início da primeira década do século, e que se esgotou neste deserto em que parece não existirem forças anímicas na democracia para resolver a profunda crise de representação.

Em 2005, os últimos dias do Governo PSD-CDS começaram com a fuga de Barroso, um acto de grande irresponsabilidade no contexto nacional, depois de uma derrota eleitoral. Os últimos dias do Governo Barroso já são parecidos com todos os dias do Governo Santana Lopes: Barroso preparava-se para despedir Manuela Ferreira Leite e estava convencido que era a política de restrição orçamental que tinha sido responsável pela derrota eleitoral nas europeias. Não me admirava que fosse, até porque o eleitorado em 2009, prevenido da crise que aí vinha, nem por isso deixou de votar em Sócrates, para um ano e meio depois o correr como um vil político que devia ser preso.

Barroso, que começou bem ao dizer que o "país estava de tanga", identificou o risco que a herança de Guterres lhe tinha deixado. Tenho há muito tempo a convicção que foi o tandem Guterres-Pina Moura o primeiro responsável da crise actual, porque o tempo político que conduziu ao pântano começou aí. As tentativas de puxar para trás a crise para comprometer Cavaco ou "todos os Governos desde o 25 de Abril" tratam tempos políticos, económicos e sociais distintos, metendo-os no mesmo saco. Pode ser útil para a propaganda, ou para uma narrativa ideológica do "Estado despesista", mas é pouco fundado nos factos. Uma coisa que é preciso nunca esquecer é que os tempos em política são diferentes e que isso não se vê apenas nas estatísticas económicas.

Na verdade, o tempo que tem sequência até ao anúncio da TSU em Setembro, começou com o "pântano" guterrista e corresponde à noção de que se estava a abrir um abismo entre a necessidade de controlar a despesa do Estado e os bloqueios vindos da partidocracia, do sistema político-constitucional e das escolhas eleitorais dos portugueses. Guterres percebeu-o tarde e foi-se embora. Barroso ainda deu um tempo a Manuela Ferreira Leite para começar a combater os motivos da "tanga" e depois tirou-lho por razões eleitoralistas e de gestão da sua carreira pessoal. Esta foi a primeira tentativa falhada de inversão. A segunda veio dos primeiros anos de Sócrates, entre 2005 e 2007, teve algum sucesso, e embora a dimensão desse sucesso tenha números exagerados, nem por isso deixou de ser meritória. O mesmo Sócrates, que veio mais tarde a rebentar com as finanças públicas, começou como disciplinador do défice. E por aqui se ficaram as tentativas ocorridas no tempo político que vivemos até 2011, de inverter uma situação de corrida ao desastre.

O espectáculo da governação neste último mês é de facto penoso de se ver. No momento em que escrevo, o primeiro-ministro anda fugido de aparecer em público nas comemorações de 5 de Outubro para evitar ser vaiado, e evitou cuidadosamente "dar a cara", como tinha prometido de peito cheio, para anunciar as "más notícias". Um brutal pacote fiscal, já bem dentro do terreno do puro confisco, foi anunciado por um ministro das Finanças que fez uma declaração de amor aos portugueses que se manifestaram chamando-lhe a ele e aos seus colegas de Governo "gatunos". Sacher-Masoch explica isto muito bem.

No Parlamento, durante a discussão das moções de censura, o ambiente de fim dos tempos era evidente. Quebrando uma regra protocolar substantiva, o primeiro-ministro recusou-se a responder individualmente aos dirigentes dos partidos que apresentaram a censura, Jerónimo de Sousa e Louçã. Não há outra explicação senão aquela que alguns deputados gritaram: "Tem medo!". E é de ter medo, porque o bom senso terra a terra e a genuína indignação de Jerónimo de Sousa, junto com a retórica parlamentar de Louçã, são poderosos face a um político acossado como é hoje Passos Coelho.

Na mesma sessão, Paulo Portas fez questão de deixar bem claro que a coreografia do entendimento ocorrida há dias entre CDS e PSD é pouco mais do que isso e que a coligação se apresenta em público rasgada sem disfarces. Tinha no dia anterior recebido uma bofetada de luva preta quando Gaspar falou do "enorme aumento de impostos", como se atirasse a Portas uma resposta pública à sua carta aos militantes dizendo "ai sim, não querias um aumento de impostos, pois leva lá um enorme aumento de impostos".

Na bancada, Passos e Relvas riam-se quando Honório Novo, do PCP, confrontava Portas com o seu "partido de contribuintes". Ao lado, estava Álvaro Santos Pereira e um Governo que uma "fonte próxima do primeiro-ministro" - o que, em linguagem jornalística, significa ou Passos Coelho ou alguém mandatado por ele - ter dito ao Expresso que era para remodelar o mais depressa possível. E Álvaro Santos Pereira, nomeado individualmente pela mesma "fonte", continua ali, impávido e sereno.

António Borges somou apenas mais algumas palavras furiosas ao tom revanchista que perpassa em todo o discurso governamental, um remake dos empurrões na incubadora de antanho: são os empresários "ignorantes" que não "perceberam" a "inteligência" da TSU; são os juízes do Tribunal Constitucional que chumbaram a meritória retirada de dois meses de salário à função pública, para protegerem os seus proventos pessoais; são os funcionários públicos que "vivem" como "cigarras", alimentando-se do trabalho das "formigas" privadas e que, se pensam que escapam, estão bem enganados. Um gigantesco "é bem feito" é dito todos os dias pelo Governo ao país. O país retribui em espécie. Depois disto tudo, não adianta queixarem-se de que as pessoas se distraem com faits-divers em vez de irem ao fundo da questão, porque cada vez mais os faits-divers são o fundo da questão, porque não há mais nada.

O Presidente está perdido no seu labirinto e tem apenas uma tentativa possível, aquilo que impropriamente se designa por "governo de salvação nacional", que é hoje mais provável do que há um ano e que pode vir a ter um escasso tempo útil no meio do desespero vigente. Teria que ser mesmo feito pelo Presidente, fora da partidocracia actual, com acordo parlamentar escrito e assinado por parte do PS, PSD e CDS que lhe desse legitimidade democrática, com um compromisso mais alargado do que o deste Governo. Esse acordo deveria incluir, preto no branco, todas as medidas julgadas necessárias para cumprir o memorando da troika, algumas que deveriam ser renegociadas sem pôr em causa os compromissos de fundo com os nossos credores.

Esse Governo teria como prazo-limite o fim da intervenção estrangeira, que é o seu principal objectivo, e deveria, a seguir, haver eleições. A austeridade não acabava, podia até estabilizar-se num patamar superior, mas teria que absolutamente ter um prazo, no fim do qual começaria a abrandar. Todas as medidas de emergência deveriam ter um prazo vivido, 2014 por exemplo, porque prazos vagos e indefinidos, ou de dez anos para cima, não são "vividos" e geram uma síndroma de Sísifo: nenhum sacrifício parece ter resultado. As palavras, demasiado repetidas, de que um político "responsável" não fala em prazos, não servem para os dias de hoje e são desresponsabilizantes. Hoje, os portugueses precisam, para retomar alguma confiança, de prazos que responsabilizem os políticos.

Não é uma solução perfeita, longe disso. Não tenho dúvidas de que os partidos farão tudo para a torpedear, mesmo que aceitem em desespero de causa. A mediocridade das carreiras políticas no PSD e no PS seria seriamente posta em causa se um Governo destes se revelar eficaz, a extrema-esquerda combatê-lo-ia sem tréguas, mas não vejo outra possibilidade de dar esperança aos portugueses e restaurar alguma confiança. É verdade que muita coisa de urgente não poderia ser feita por uma solução deste tipo: alterar a Constituição, promover um combate eficaz à corrupção, introduzir legislação que inverta o processo de domínio partidocrata, como seja a possibilidade de grupos de cidadãos concorrerem ao Parlamento, a colocação dos nomes das listas partidárias por ordem, etc. Mas muitas outras medidas podem e devem ser tomadas.

A alternativa a uma solução presidencial deste tipo acabará por ser novas eleições sem garantia de governabilidade nos seus resultados, até porque na actual configuração parlamentar não vejo qualquer possibilidade de haver uma solução que substitua a desagregação acelerada da actual governação. O que não pode continuar é o que está, embora também saiba que o apodrecimento dura demasiado tempo e muitas vezes acontece por apatia e interesse egoísta, e depois parte-se para o que já é inevitável há muito tempo, tarde de mais. Esta responsabilidade, a seu tempo, ou seja, em breve, o Presidente não a pode falhar. É coerente com o mandato que procurou e recebeu e com o seu entendimento do papel presidencial. Se não o fizer, e há-de haver uma altura em que até o PSD e o CDS o pedirão, acabará a presidir ao apodrecimento, com ele como parte do problema, por omissão. Vamos ver.
"

(José Pacheco Pereira, Versão do Público de 6 de Outubro de 2012.)

terça-feira, 31 de julho de 2012

"... A troika fecha os olhos, ou porque precisa de um exemplo positivo para mostrar aos malditos gregos, ou porque uma parte da troika começa a perceber que o programa de laboratório não resulta nos testes com os ratinhos, ou porque, avaliando Portugal, se avalia a si própria e não quer dar má nota a si mesma.

Mas o problema destas frases de spin é que escondem o facto tenebroso: o problema que existia, continua lá; ou não é o problema que foi apontado e é outro; ou os remédios não servem, ou os médicos..."

terça-feira, 20 de março de 2012

Senhor, encolhi o país!

" Ser membro do PSD nestas alturas tem que ser um momento particular de perplexidade. Claro que me refiro àqueles membros do PSD que foram atraídos pela muito sui generis e portuguesa fusão de tradições políticas, que ia do liberalismo político à noção de que a política não esgota o campo do humano, até à consciência de que é obrigação do Estado garantir um quantum de justiça social, tudo isso fundido num partido com uma história que era o seu "programa não-escrito". Em momentos decisivos, em 1975, no PREC, na luta de Sá Carneiro contra a hegemonia militar pós-25 de Abril e pelo retorno a uma democracia civilista plena; em 1979, na vitória da AD e na materialização da alternância política; em 1987, com a maioria absoluta subvertendo um défice de governabilidade inscrito na Constituição; em 1989, na revisão constitucional que permitiu a reconstrução de uma economia privada fora do Estado, o PSD teve um papel central. Não me custa admitir que, em 1975 e em 1986, o PS teve um papel mais importante, quer na defesa da democracia, quer na entrada de Portugal na Europa, mas o PSD esteve ao seu lado.

Nem toda a história do PSD é linear, há momentos em que se caiu numa lógica de gestão de interesses no "bloco central", ou se permitiu uma viragem à direita, com Durão Barroso, e com Santana Lopes, roçando-se um populismo e um culto da personalidade, que abriu caminho a uma diluição programática. Por outro lado, a qualidade da governação, que tinha sido um ponto de honra na AD, perdeu-se com o acesso ao poder de muita gente impreparada ou ligada a interesses, que ajudou a retirar ao PSD o prestígio da boa governação. Na oposição, com excepção do momento de patologia de Menezes, quer Marques Mendes, quer Marcelo Rebelo de Sousa, quer Manuela Ferreira Leite tentaram introduzir alguma sanidade interna e algum rigor nas posições, mas todos falharam às mãos da degenerescência oligárquica no seio do aparelho partidário. Permitiu-se, como no PS, uma captura de um partido democrático por um aparelho de poder interno, muitas vezes medíocre, interesseiro e corrupto.

Assim se chegou aos dias de hoje. Em 2012, o PSD no Governo está a gerir apenas uma crise herdada, está a cumprir o seu programa, ou a permitir que se faça outra coisa de natureza muito distinta pouco coerente com o seu programa e a sua tradição? Temo que seja este último caso, e temo que se deixem isolados num vazio incómodo muitos dos militantes que ainda permanecem fiéis ao seu património fundador, que, esse sim, não é "actualizável", sob pena de perda da identidade do partido. Os mais veementes aplausos à acção governativa vêm de poderosos interesses na sociedade portuguesa, que pouco têm a ver com o eleitorado "genético" do PSD ou com os portugueses que é suposto representar pelo seu programa e acção.

A deslocação à direita foi tão violenta, sem rigor nem memória, que hoje um moderado do PSD que tente reformular no actual contexto algumas preocupações que fazem parte do gene do PSD parece um adversário do capitalismo e da liberdade económicos. Olhem que não, olhem que não. Falo, como é óbvio, do gene mesmo e não da sua reconstrução mutante feita para incorporar o memorando da troika como sendo a quinta-essência do programa do PSD.

A falta de equilíbrio do debate político, a sua ausência de memória histórica e ideológica e a sua subserviência às modas, o mimetismo da linguagem mediática e o simplismo redutor dos blogues chegaram a um ponto quase esquizofrénico de que falar com preocupação do desemprego, em vez das maravilhas do empreendedorismo, falar de equidade fiscal, falar de "justiça social", de preocupação com a pobreza, dos direitos dos trabalhadores, da "dignidade do trabalho", tudo isto pareça ser de um esquerdismo muito para lá do BE e do PCP. Mas, foi desta incomodidade face à injustiça, à desigualdade, à exclusão, ao desprezo pelos mais fracos, que os fundadores do PSD, a começar por Sá Carneiro, falaram. O resto vinha depois e era subordinado, instrumental, dependente deste sentido de fundo. Nenhuma deles veria sem repulsa a indiferença olímpica face ao empobrecimento colectivo e ao desemprego, seu principal factor. E nenhum deles tinha a mais pequena hesitação sobre o papel da economia privada, sobre o capitalismo, como instrumento de riqueza, mas a expressão "com sentido social" não era retórica, mas preocupação constante e primeira.

Há várias coisas que se estão a passar sob o manto da austeridade necessária que nada têm a ver nem com a austeridade, nem com a necessidade. Basta ler o que escrevi nos últimos anos para não ter dúvida nenhuma de que de há muito penso que um "ajustamento", como agora se diz, mesmo muito severo, seria inevitável e necessário. Nenhuma dúvida se me colocou de que esse "ajustamento" iria afectar muitos portugueses no seu nível de vida, e que não se podia escapar a esse destino, nem a bem, nem a mal. Foi a mal, com a troika a bater à porta. Mas depois deu-se uma sucessão de acontecimentos, que, esses sim, podiam ter ocorrido de outra maneira. Há várias coisas que estão a acontecer que deveriam merecer uma maior atenção de toda a gente sensata e moderada, a começar por aqueles que ainda chamam social-democrata ao seu partido.

O que está a mudar Portugal é que se está a dar uma enorme deslocação de recursos entre classes e grupos sociais, uns ganhando, outros perdendo. Não é um processo unívoco, mas a sua dimensão deveria preocupar um Governo do PSD. Mas não só não o preocupa como está activamente a contribuir para que isso aconteça. E, se é verdade que todos perdem - e os milhões que os nossos "milionários" perderam e estão a perder são reais e vultuosos -, nem por isso todos estão a perder da mesma maneira e alguns vão poder "sair" da crise com muito mais poder e mais bens, logo, a prazo, com mais dinheiro. Pelo contrário, a destruição da classe média vai deixar a sociedade sem mecanismos de mobilidade social e sem dinâmica.

A ideia de que pode haver uma "democratização da economia", signifique lá isso o que significar, não tem nenhuma correspondência com a realidade. A destruição maciça de empresas, a entrega de participações, bens, recursos à banca, quer directamente, quer por via intermediária do fisco, acompanha o desemprego como meio de embaratecer o trabalho. Em complemento deste processo, e com ele associada, há uma enorme redistribuição de poder, resultado de uma brutal e rápida concentração de poder de decisão e de recursos nas mãos de um grupo cada vez mais pequeno de pessoas, que circulam numa elite que sempre foi muito fechada, mas que agora ainda o é mais. As redes interiores do poder, que circulam entre os grupos económicos, o poder político, a grande advocacia de negócios, alguns think tanks, empresas de consultadoria, conselhos de administração das fundações mais poderosas, reguladores e, de um modo geral, todos os lugares de nomeação estatal, em "grupos de trabalho", "comissões de acompanhamento", etc. estão cada vez mais entregues "sempre aos mesmos". A razão é que as relações de confiança nestes momentos de crise são mais importantes do que tudo o resto, seja a competência e mérito, seja a renovação, sejam mesmo os valores propagados da competição e da liberdade económica. E os "mesmos" já deram provas de lealdade e serviço.

Os "mesmos" estão por isso também a escapar, quando não mesmo a beneficiar da crise. A demagogia reinante obriga toda a gente a dizer que trabalha de graça, mas aliás podiam até todos trabalhar de graça, porque o poder que assumem no exercício de certas funções acompanha-os para o lugar seguinte, que já é bem pouco gratuito. O mundo divide-se, pois, entre os que têm "acesso" e os que não têm, e a concentração do poder económico, o reforço do Estado fiscal, as ondas de eco de procedimentos autoritários e expeditos em nome da crise por todo o sistema bancário, o esbulho puro e simples ou a aceitação de propostas chantagistas para o acesso ao crédito estão a permitir centralizar o poder de decisão. O medo faz o resto.

Os aplausos não enganam. E os aplausos são cada vez mais agressivos, mais abafantes, menos tolerantes. É que oportunidades como esta de moldar o estado, a economia, os trabalhadores, as pessoas a uma mais drástica hierarquia de poder dos "mesmos", não acontecem todos os dias. O que está em jogo são poderosos interesses e encontraram ouvidos atentos e "espírito de serviço". Os "mesmos" desprezam os "políticos", mas não podem viver sem eles. Não ganham eleições, precisam dos "políticos". Para "encolher o país", como no filme."
José Pacheco Pereira
(Versão do Público de 17 de Março de 2012.)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A nova luta de classes

" Há dias, no programa Prós e Contras, um conselheiro de "empreendedorismo" teorizava, de forma prosélita e desenvolta, sobre as más escolhas de "projecto de vida" que justificariam muito do desemprego actual. Era evidente pela conversa, que achava que existia uma espécie de culpa individual em se estar desempregado. Pelo meio, perguntou, com evidente escárnio, a um desempregado se este tinha tirado um curso de História, uma imprevidência para quem quer ter um emprego. Não tenho dúvida de que quem formulava esta pergunta fazia parte de um dos lados do novo binómio da luta de classes descrito por Passos Coelho, o dos "descomplexados competitivos". O curso de História, se tivesse feito parte do currículo do desempregado, colocá-lo-ia de imediato na categoria de "preguiçoso autocentrado", antiquado e inútil, "piegas" e queixoso, a quem é preciso dar um abanão de pobreza a ver se se torna "competitivo". Estamos, como já referi, perante uma nova forma de luta de classes: a que opõe "descomplexados competitivos" a "preguiçosos autocentrados". Pelos vistos, uma característica destes últimos é que se interessam por História.


É verdade que saber História vale muito pouco no mercado de trabalho, mas também é verdade que saber Matemática pura, Física Teórica, Astronomia, Biologia Molecular, já para não falar de Filosofia, Sociologia, Geografia, Grego Clássico e Latim, Literatura Portuguesa, também não valem muito mais. E, by the way, os milhares de licenciados em Marketing, Economia, Jornalismo, ou como se diz agora "Ciências de Comunicação", Artes Performativas, Arquitectura, Composição, os pianistas, violoncelistas, violinistas, também não vão muito longe. Seguindo o critério do nosso mago do "empreendedorismo", não é muito difícil, e no meu caso gratuito, aconselhar cursos seguros e certos. Eu costumo aconselhar maltês, uma língua de que há enorme escassez de tradutores e intérpretes na UE, e o turco, russo, chinês e árabe também podem fazer parte do currículo dos candidatos a "descomplexados competitivos". Mandarim ou cantonês de certeza que têm futuro, assim como "beber a água do Bengo", na exacta composição químico-financeira corrente para esses lados.


Saber de História não é garantia de nada, nem o conhecimento da História garante que se saiba governar um país. Mas ajuda, ajuda pelo menos a ter-se uma visão menos cega da nossa missão no governo das coisas privadas e públicas, e a conhecer alguma coisa sobre os limites do voluntarismo político. E ajuda bastante a não se ser ignorante, nem a se actuar como um ignorante quando se pensa que tudo começa em nós, essa ilusão adâmica muito corrente nestes dias.


A História ajuda nas coisas grandes e nas pequenas, torna o mundo mais interessante e alimenta a curiosidade e o engenho. Para gostar de comer um croissant não é preciso olhar para ele com os olhos da História e perceber que se está a cometer um acto muito pouco politicamente correcto de turcofobia, ou, pior, de islamofobia. Mas quem sabe o que é e de onde vem o croissant, costuma saber um pouco mais sobre a História da Europa e isso faz bem à sanidade do debate público. Muita asneira que para aí circula sobre os feriados e o seu significado, sobre a Maçonaria, sobre o comunismo, sobre o fascismo, sobre a democracia, poderia ser evitada lendo um pouco mais sobre História.


A História, como todas as formas de cultura viva, é uma forma de saber e olhar. Engana e ilude muito, mas também modera a tendência para a vã glória. Se é que a História nos ensina alguma coisa, é que poucas coisas são realmente importantes e que 99,99% dos casos o que fazemos pouco muda, ou não muda nada. Para os governantes, é obrigatório, para se enxergarem melhor, uma actividade que normalmente não lhes "assiste". Países como o Reino Unido, ou os EUA, têm a História no centro da política, o que nem sempre dá bons resultados, como se vê em França, onde todos os Presidentes do passado achavam que eram uma encarnação de Vercingétorix, Joana d"Arc, Luís XIV, Napoleão ou De Gaulle e os actuais já ficam contentes em serem como o Astérix.


O discurso de Odivelas do primeiro-ministro ganhava alguma coisa com a História, embora, como ele se encontra na categoria dos "descomplexados competitivos", não ligue muito a uma disciplina dos perdedores. Mas assim saberia que, antes de nomear os "preguiçosos autocentrados" como seus adversários, deveria pensar duas vezes sobre o papel que o epíteto de "preguiçosos" tem quando é usado genericamente para designar grupos ou comportamentos sociais. Para os colonos, os "pretos" eram a quinta-essência dos "preguiçosos" e por isso deviam ser obrigados a trabalhar à força de castigos corporais. Puxem pela língua a muitos patrões e aos seus capatazes (hoje chamam-se "responsáveis pelo pessoal"), às "patroas" sobre as suas "criadas", e o epíteto de "preguiçoso" aparece quase de imediato. Em países em que coexistem zonas industrializadas com regiões rurais, os habitantes dessas regiões, o Alentejo, a Galiza, a Andaluzia, o Sul de Itália, são descritos em anedotas como "preguiçosos". Nos campos trabalha-se muito, dependendo do ciclo agrícola, e há períodos de inactividade, onde, como toda a gente sabe das anedotas, os alentejanos estão debaixo de um "chaparro" a ver o mundo passar em slow motion.

Existe, aliás, outra classificação que costuma vir junto, a de associar essa ruralidade à falta de inteligência e dificuldade em socializar de forma adequada, ou seja, não só eram estúpidos, limitados, como não sabiam comer à mesa. É para isso que servem os epítetos de "saloios" ou de "labregos", a interessante migração da palavra galega para camponês, que veio junto nos anos trinta e quarenta do século XX com os galegos, que a miséria da sua terra trouxe para trabalhar em mercearias e restaurantes, ou outros ofícios menores, em Lisboa e no Porto. O problema da História é este, o de tornar poucas palavras inocentes.


Na luta de classes entre os "descomplexados competitivos" e os "preguiçosos autocentrados", a ordem dos pares é interessante, quer na parte social, quer na do psicologismo vulgar. Os "preguiçosos" são primeiro preguiçosos e s?? depois são "autocentrados", e os "competitivos" são primeiro "descomplexados" e é por isso que são "competitivos". Os pares têm, por isso, uma ordem invertida: nos "preguiçosos", avulta a condição social, nos "descomplexados", a psicologia domina. Embora provavelmente nada disto tenha sido muito pensado e saiu assim, como poderia ter saído de outra maneira semelhante, este dualismo revela aquilo que os sociólogos chamam as background assumptions do seu autor. Os que estão presos na sua condição social, deixam soçobrar a sua psicologia no egoísmo; os dinâmicos psicologistas ultrapassam a sua condição social pelo êxito no mercado.


O país divide-se assim entre funcionários públicos, vivendo do erário público, acima das suas posses, e fazendo tudo para ter feriados e não trabalhar (os "preguiçosos"), cultivando um egoísmo social assente em pretensos "direitos adquiridos" ("autocentrados"); e jovens yuppies, dinâmicos e empreendedores, com uma "cultura empresarial", capazes de correrem riscos ("competitivos"), sem cuidarem de terem "direitos" para subirem "por mérito" na escala social ("descomplexados"). Nem uns nem outros existem na vida real, nem sequer como caricaturas, que é o que isto é, mas isso pouco importa.


A História está cheia destes dualismos, velhos como o tempo, mas típicos da linguagem abastardada do poder dos nossos dias. É um esquema assente numa mistura de demonização e de wishful thinking, que circula assente num moralismo social, também típico dos dias que passam. A História revela o poder destrutivo deste tipo de discursos, que se tornam, de um momento para o outro, socialmente insuportáveis.


Esse momento ainda não se deu, e os papagaios do "pensamento único" repetem este discurso sem pararem para pensar. Ou sequer para ler alguma coisa de História, mesmo com o risco de se tornarem "preguiçosos autocentrados"."
José Pacheco Pereira

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O problema vem de longe...

... " O que aconteceu nos últimos dois anos ainda está longe de ser esclarecido, desde a história do e-mail roubado ao Público e que comprometeu o Presidente, o modo como a questão foi gerida com grande prejuízo para a campanha de Manuela Ferreira Leite, o aproveitamento que José Sócrates fez dos serviços e algumas iniciativas que tomou no limiar da legalidade, a actuação de personagens ligadas ao poder económico muito dependentes nos seus negócios das informações, nacionais e internacionais e, por fim, o modo como a previsível mudança de poder político começou a mover peças em serviços muito fragilizados quer pelos cortes orçamentais, quer pela ligação dos seus dirigentes ao poder político.
Tudo isto está longe de ser esclarecido e não é matéria póstuma, está bem viva e em curso. Um efeito perverso de ter feito gorar o plano original, de que Jorge da Silva Carvalho era a peça principal, com as fugas de informação que o comprometeram, foi permitir o saneamento de todos os que se lhe opunham nos serviços, moldando assim ainda mais o terreno para um takover político. O resultado de tudo isto é a progressiva destruição dos nossos nascentes e ainda frágeis serviços de informação, ou seja, os portugueses ficam ainda mais inseguros."...

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Triste, mesquinho, nojento.
Algo ao nível da campanha negra feita contra Sá Carneiro, o Menino Guerreiro ou a homossexualidade de Sócrates.
Cheio de imprecisões ideológicas, geográficas e históricas.
Um filme em que se fala constantemente de ajuste de contas... mas de quem com quem?!

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

" Um tratado que institucionalize quem manda e quem obedece, viola as intenções de homens como Jean Monnet, Schuman, De Gasperi e Adenauer, que sabiam muito bem que uma Europa assim nunca será nem unida, nem Europa."
José Pacheco Pereira

terça-feira, 22 de novembro de 2011

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

"Assembleias populares"

" As "Assembleias populares" dos "indignados" são mais um dos sinais do grau zero da política dos dias de hoje. Para além do absurdo de ver cem pessoas, que depois se reduzem a umas dezenas, a tomarem-se a sério, se é que isto não é uma contradição nos seus termos, como se estivessem a governar o país, sem suscitar o ridículo geral, há quem escreva entusiasmado sobre aquele Petit Guignol, como se de um soviete se tratasse. Acresce o orwelliano tique de se chamarem "assembleias" quando são ajuntamentos ad hoc, em que ninguém representa ninguém, nem muitas vezes se representa a si próprio dado que está em estado de transe induzido, e de usarem o nome de "populares", quando, se aquilo é o povo português, eu quero emigrar para as Desertas.
Tenho pena que não tenha havido uma transmissão directa na televisão das "Assembleias Populares", e que os jornalistas, tão atentos à manifestação e à coreografia, se tivessem esquecido de ouvir os intervenientes na "Assembleia", o que seria um excelente revelador do estado daquela arte. Para além dos escassos oradores espontâneos, que não falam a linguagem do clã, terem sido desprezados, ignorados e maltratados, - um cego foi lá propor que bastavam cinco pessoas para empancarem os torniquetes das entradas do metro para se poder viajar de graça, um dos militares anónimos que fez o 25 de Abril foi lá falar das "conquista da democracia" (vaias) e pareceu aos assistentes muito "político", - o resto foi uma sucessão de discursos exaltados e muitas vezes conflituais entre participantes sobre procedimentos e o que fazer a seguir. Outro orador explicou que "eles é que deviam estar lá dentro (na Assembleia da República) porque eles é que representam o povo". Palmas. Um quadro do regime anterior ao 25 de Abril, apresentando-se como tal, veio também explicar que era preciso "defender a verdadeira democracia". Outro, teve o cuidado de dizer que ia para casa dormir mas não delegava o poder de decidir o que se ia fazer em ninguém porque ele é que era senhor do seu voto e queria exercê-lo pessoalmente. Quando voltasse, claro.Em suma, um festival.
A verdade sobre tudo isto é simples: as "Assembleias populares" dos "indignados" são uma das maiores fantochadas políticas que por aí andam."

domingo, 25 de setembro de 2011

Pensava que isto se tinha perdido no tempo... Felizmente que há o Ephemera!

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Uma das coisas que me faz impressão na política(?) é o constante ataque às pessoas de bem, promovido por chico-espertismo bacoco.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

e sobre o debate no PS

"Um dos sinais mais confrangedores do nosso estado de coisas é o actual debate no PS. É isto que o principal partido da oposição tem a dar como debate após a crise que o tirou do poder? Nada, rigorosamente nada. Junto disto uma Universidade de Verão da JSD parece Oxford, Yale, Cambridge e Harvard juntos.
Podem-se encontrar mil e uma razões para falar da “prisão” argumentativa do PS pelo acordo com a troika, mas isso é o menos válido dos argumentos porque, não só esse acordo ganha e muito em ser discutido, como, penso eu com certa ingenuidade, continua a haver mundo depois da troika. É verdade que penso que Assis é diferente de Seguro, um produto estandartizado da máquina de produção das “jotas”, o que aliás não é, nos dias que correm, má carreira. Mas ela tem o Principio de Peter inscrito na sua génese e, mais cedo ou mais tarde, ele revela-se com todo o esplendor. Quanto a Assis, que eu conheci ainda Presidente da Câmara de Amarante a querer ir mais longe no debate então consentido – por exemplo - organizou comigo e com Sottomayor Cardia um debate então “proibido” por todas as ortodoxias sobre a abertura da televisão à iniciativa privada, - precisa de ter adversários à altura. É aí que a solidez da sua formação política ultrapassa a retórica das suas palavras, que também não é por si só defeito num tempo em que dominam os soundbites. Então Assis aparece como pensando a política sem deixar de a fazer, uma excepção aos tempos de espectáculo rasteiro em que vivemos.

O deserto de ideias que Sócrates deixou não é de agora. O deserto de ideias vem de Guterres e já fez surgir, da areia seca, Sócrates. Este por sua vez empenhou-se a sério em manter a ecologia de onde tinha nascido, como último arbusto espinhoso num mar de areia. Compreende-se. Agora, a actual disputa interna acaba por representar mais um passo nessa desertificação da desertificação, uma vaga palração inócua e genérica que não move ninguém, nem interessa a ninguém. É como se estivessem a ler uma lista telefónica.
No debate sobre o partido Seguro fala de uma vacuidade, a necessidade de “refundar o PS”, coisa que ninguém sabe o que é e que, se existisse, mesmo em embrião levaria Seguro à mais ignominiosa derrota da história do PS. Quanto a Assis, como aparece como o underdog, vai mais longe e propõe um sistema à americana de eleições internas abertas a eleitores registados, para tentar escapar ao controlo aparelhístico que favorece Seguro. È uma proposta que vale a pena discutir, e em que já acreditei mais do que acredito. Mas, insisto, merece discussão e é a única coisa de diferente que surgiu neste debate.

COMBATER O APARELHISMO

Já tive a ilusão que os mecanismos de proximidade e o alargamento da base eleitoral eram condições para diminuir o poder crescente dos aparelhos de gestão de carreiras que tomaram o PS e o PSD. Hoje sou mais céptico e menos entusiasta dessas fórmulas, porque infelizmente, tudo é demasiado pequeno em Portugal. A regra de que todos somos primos uns dos outros, é uma praga em Portugal.

Não é difícil ao aparelho alargar o controlo para universos eleitorais mais vastos a nível local e regional, e aí ganhar um acréscimo de legitimidade que está longe de ser inócuo nos seus efeitos. Mas admito que, se o universo eleitoral for de facto muito amplo e com base nacional, talvez haja aí uma vantagem. Porém outro risco pode manifestar-se que é deslocar a eleição partidária para o terreno mediático e, se bem que isso possa fazer melhor corresponder a vitória eleitoral interna ao sentimento do eleitorado, pode também reproduzir as perversões espectaculares para o interior dos partidos. Mas admito que possa haver uma experiência nesse sentido.

Há outro caminho, mais difícil e menos popular, mas cujo mérito se pode medir pela oposição dos aparelhos à sua aplicação. Refiro-me a medidas como aquelas que Rui Rio introduziu no PSD quando do chamado processo de refiliação, e que ficaram pelo caminho devido às enormes resistências que geraram. Algumas eram tão simples como os mecanismos de fiabilidade no pagamento das quotas, de modo a garantir que estas não eram (não sejam) pagas colectivamente por caciques das secções. E outras para dificultar o papel dos sindicatos de voto, implicando regras quando ao direito de voto, elaboração de cadernos eleitorais, controlo das eleições, etc., etc. Também não são eficazes a cem por cento, mas melhoram muito a ecologia eleitoral."

José Pacheco Pereira

terça-feira, 5 de julho de 2011

O Iceberg RTP

"Na campanha eleitoral do PSD, a privatização da RTP era apresentada como medida emblemática. Não posso deixar de saudar tal proposta que defendo há mais de dez anos, e que tem conhecido um destino sinuoso dentro do PSD. Cavaco Silva era hostil à privatização, e só com Marcelo de Sousa é que tal proposta foi aceite dentro do PSD. Logo a seguir, Durão Barroso manteve-a de forma mitigada, mas, mal chegou ao Governo, abandonou-a de imediato. Pior ainda, deu à RTP o que ela sempre quis: atribuiu-lhe uma indemnização compensatória pelo "serviço público" a que a esquerda bate palmas ainda hoje.


Conheço de mais todos os argumentos que justificam a existência de um sector público de comunicação social, em particular por comparação com outros países europeus, assentes numa justificação histórica que perdeu muito do seu sentido, e em exemplos e em contextos muito diferentes. Se alguém pensa que a RTP é a nossa BBC, nem conhece a BBC, nem as controvérsias sucessivas que o seu controlo político tem suscitado. Não há país em que haja televisão pública em que não haja também uma contínua controvérsia sobre o seu papel, e em que os argumentos em sua defesa não sejam estatistas, seja em versão de esquerda, seja de direita.

Outra coisa é ter ou conceber a existência de um "serviço público" de comunicação que pode e deve ser concertado com os operadores privados, pode implicar linhas de financiamento no âmbito da cultura, ou dos negócios estrangeiros (a função da RTP África é geoestratégica), e que necessita de ser definido sempre de uma forma minimalista. Foi, aliás, a defesa deste "serviço público mínimo" o teor da minha primeira intervenção parlamentar em 1987 e, como já escrevi, há muito anos, o serviço público é uma coisa, os canais públicos são outra.

A presença do Estado na comunicação social é muito vasta e está longe de poder ser reduzida apenas à RTP. O sector Estado inclui no sector de televisão, quer em sinal aberto, por cabo ou online, a RTP1, RTP2, RTP Madeira, RTP Açores, RTP Internacional, RTP África, RTPN, RTP Memória e RTP Mobile. Na rádio inclui, quer em sinal aberto ou online, a Antena 1, Antena 2, Antena 3, RDP Internacional, RDP África, RDP Madeira-Antena 1, RDP Madeira-Antena 3, RDP Açores-Antena 1, Rádio Lusitânia, Rádio Vivace, Rádio Antena 1 Vida, Antena 3 Rock, Antena 3 Dance, Antena 1 Fado. Tem igualmente uma participação maioritária na Lusa. Em bom rigor deveria acrescentar-se a esta lista os órgãos de comunicação social detidos ou participados pelos governos regionais e pelas autarquias. Não existe também qualquer definição explícita e clara do que é o serviço público, nele cabendo desde o futebol, os concursos, espectáculos musicais, telenovelas, música rock, programas de variedades, e pelos vistos, o Preço Certo. Isto significa que o Estado detém o maior grupo de comunicação social português.

O financiamento deste sector público na comunicação social foi nos últimos anos mais vultuoso do que o de qualquer empresa pública. A RTP é financiada essencialmente por fundos públicos com origem quer na Indemnização Compensatória quer pela Contribuição Audiovisual, que se paga junto com a electricidade. Cegos e surdos pagam a Contribuição Audiovisual, mesmo que não vejam televisão ou ouçam rádio.

Entre 2003 e 2009, a RTP recebeu do Estado cerca de 2000 milhões de euros, o que dá cerca de 300 milhões por ano. Em 2010 recebeu 308 milhões de euros, muito mais do que recebe a CP, a Carris, a STCP, o Metro, a Refer, todos os teatros nacionais e todas as indemnizações compensatórias nos transportes locais, regionais, de barco, camionagem, avião, etc. (valores da Resolução do Conselho de Ministros n.º 96/2010). Só a RTP recebeu em 2010 mais de cinco vezes o que recebeu a CP.

Ora, quer no programa eleitoral, quer no programa de Governo, a fórmula relativa à privatização da RTP é muito ambígua, como aliás é, por derivação, a fórmula quanto à rádio. No programa do PSD diz-se que "o universo de rádios da Antena 1, 2 e 3 seguirá os mesmos princípios gerais a aplicar à RTP"; e no programa do Governo está "a Antena 1, 2 e 3 seguirá os mesmos princípios gerais a aplicar à RTP." O único caso em que a decisão de privatização é clara é a Lusa, embora a fórmula vaga "momento oportuno" também aqui esteja.

Voltemos à televisão. No programa do PSD diz-se: "Ir-se-á proceder, em momento oportuno, à alienação ao sector privado de um dos canais públicos comerciais actuais. Quanto ao outro canal, hoje comercial, ficará na esfera pública e será essencialmente orientado para um novo conceito de serviço público." No Programa do Governo há uma outra fórmula: "O Grupo RTP deverá ser reestruturado de maneira a obter-se uma forte contenção de custos operacionais já em 2012 criando, assim, condições tanto para a redução significativa do esforço financeiro dos contribuintes quanto para o processo de privatização. Este incluirá a privatização de um dos canais públicos a ser concretizada oportunamente e em modelo a definir face às condições de mercado." Em ambos os casos há uma fórmula que implica apenas a privatização de um só canal, o que levanta o problema de se saber se esse canal é a RTP1, o único caso em que tem sentido falar de "privatização da RTP" como medida com significado político. Se for a RTP2, tudo permanece na mesma em termos da presença do Estado, ou seja, não há verdadeira privatização da televisão.

Porém, quando se lêem os dois programas a diferença vai mais longe. No programa do PSD um canal comercial (RTP1 ou 2) será privatizado, o outro será "orientado para um novo conceito de serviço público", o que não se sabe muito bem o que é. No Programa do Governo um dos canais públicos será privatizado (admito que "público" aqui significa em sinal aberto, porque a RTP África, RTP N, RTP Memória são também canais públicos) e não se diz nada sobre o destino do que sobra. Em ambos os casos o tempo é o "oportuno" (tempo bem menos preciso do que o de outras privatizações), mas acrescenta-se "em modelo a definir face às condições de mercado", e aqui é que está a frase- chave que não aparece no programa eleitoral e que muda tudo.

Sabemos o que aconteceu entretanto, embora se esteja longe de saber tudo. Sabemos que os donos da SIC (declaração de interesse, participo em dois programas da SIC) e da TVI, afirmaram com veemência que a privatização de um canal aberto da RTP criaria uma situação de falência no sector, dada a escassez da publicidade gerada pela crise, tornando "impossível" a viabilidade de três canais privados. Sabemos também que os grupos de comunicação social que não têm televisão ligados à Ongoing e à Cofina pretendem o novo canal. Aparentemente a fórmula "face às condições de mercado" significa que a posição e os interesses da SIC e da TVI foram tomados em conta e que, como "as condições de mercado" não vão mudar tão cedo, também não haverá privatização da RTP, naquilo que conta, a RTP1.

Existe uma outra alternativa, o fim do sector de comunicação social do Estado, por pura extinção. Isso implica definir com toda a clareza o serviço público a contratar e a multiplicidade das suas novas "encomendas", e defender os direitos dos trabalhadores. Não percebo que um Estado que fecha hospitais, permite a morte lenta dos Estaleiros de Viana, que, no fundo considera normal, e não possa acabar com a RTP se entende que as "condições de mercado" não permitem a sua privatização, o que aliás ainda está por demonstrar.

A razão principal pela qual defendo o fim da RTP e de todo o sector público de comunicação social tem sido sempre a mesma: não cabe, dentro do que entendo serem funções do Estado, ter órgãos de comunicação social. A questão dos custos e o papel perverso de órgãos de comunicação social com comando político é igualmente relevante, mas para mim o que é essencial é considerar que não há nenhuma razão para o Estado ter órgãos de comunicação social numa sociedade aberta e livre, em que existem grupos privados de comunicação social, mesmo no sistema de competição imperfeita actual. Agora, que toda a gente usa o qualificativo liberal a torto e a direito, aqui tem uma genuína posição liberal, liberal de liberdade."

José Pacheco Pereira, (Versão do Público, 3 de Julho de 2011.)