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terça-feira, 14 de maio de 2013

O Guignol

No início do século XIX apareceu em Lyon um nova versão do teatro de marionetes com uma personagem central que deu o nome à cena: Guignol. Muitas das suas personagens são idênticas às da Commedia dell"Arte italiana e incluem variantes do Arlequim, do Polichinelo, uns criados oportunistas, uns "burgueses", um militar façanhudo, um polícia e vários ladrões, uns ingénuos e uns espertos, umas damas de virtude assanhada e outras de costumes fáceis, etc., etc. A actividade mais popular no Guignol é a pancadaria, sendo que a cabeça dos bonecos tem sempre que ser feita de madeira dura para permitir a repetida cena de uma ou várias personagens andarem com um pau a bater na cabeça uns dos outros. Se se quiser dizer em português, o Guignol é uma fantochada.

A imagem do Guignol, cujas variantes nacionais ainda estão nas minhas memórias de infância, perseguiu-me toda a semana passada enquanto assistia ao espectáculo dado pelas sucessivas declarações de Passos Coelho e Paulo Portas, os arrufos e as declarações de amor perpétuo, os elogios da corte de servidores, a admiração dos jornalistas e comentadores com a supina inteligência de um e a incompetência "mediática" do outro, num jogo de cena penoso de se ver, diante de milhões de pessoas a empobrecer, desempregadas, ameaçadas nos seus direitos mais básicos, velhos sem qualquer alternativa atirados aos cães da "convergência das pensões". Era Guignol do mais perfeito: pauladas, tiradas retóricas, choros e arrependimentos, mentiras e maldades. 

A sequência rápida destas últimas semanas diz tudo sobre como estamos. Comecemos pelo chumbo do Tribunal Constitucional, seguida das declarações de fúria governamental, da cena de silêncio e ida a Belém (porquê?), do despacho vingador de Vítor Gaspar, que continua em vigor e ninguém aplica porque é impraticável; das fugas de informação de que as reuniões do Conselho de Ministros são campos de batalha entre facções do Governo, detalhadamente contadas ao Expresso, a Marques Mendes, a Marcelo, a qualquer órgão de informação que queira saber; do discurso autocastrador de Cavaco Silva no 25 de Abril; do plano abstracto de "fomento industrial", anunciado com tanta pompa quanto o vazio de concretização, por uma facção do Governo ligada ao "crescimento"; da Assembleia informada de que terá direito a ver um documento essencial para o futuro do país, "uns minutinhos antes" de Bruxelas; da Assembleia informada de que pode discutir os créditos swap, mas que o acesso ao relatório que iliba a secretária de Estado (e feito sob sua direcção) permanece "confidencial"; do Documento de Estratégia Orçamental apresentado pela outra facção do Governo, a do "rigor orçamental", da ordem do imaginário (e aprovado por Portas que também o acha "irrealista"), dos anúncios sobre anúncios que não anunciam nada, do "será para depois de amanhã", "afinal os pormenores serão só para depois", etc., etc. "Menus de propostas", uma ridícula denominação, de vários tipos: anunciadas; anunciadas mas vetadas por outro ministro do mesmo Governo; anunciadas mas "abertas" para se cumprir o ritual da concertação social, e o novo ritual do "consenso"; propostas "equacionadas"; propostas que quando dão torto passam a "hipóteses" de trabalho (sendo que os números divulgados noutros documentos de "poupanças" são as das "hipóteses" e não as das propostas...), propostas em versão A e B e C, mudadas no espaço de uma semana; propostas terroristas passadas em fugas à comunicação social para ver no que dá e para depois vir o Governo congratular-se por afinal não ir fazer tão mal aos cidadãos como tinha "soprado" a uma imprensa que publica tudo; não-propostas e antipropostas da ordem da matéria negra e da antimatéria. Alguém me sabe ou pode dizer, a uma semana do seu anúncio, que medidas estão efectivamente decididas? Ninguém.

O "menu de propostas" parece aqueles menus desleixados em que uma cruz significa que o prato já não há, e depois, quando se pede outro, já não há os ingredientes e é melhor escolher o que não se tinha escolhido; ou aqueles menus dos restaurantes de luxo em que um palavreado destinado a épater le bourgeois, como "emulsão de chouriço", "vinagrete de citrinos" ou "sardinha em seu suco", ocultam pouco mais do que uma folha de alface comAceto Balsamico de Modena feito na Bairrada. E quanto aos preços do "menu" não há um único que bata certo. Os do Documento de Estratégia Orçamental não são os mesmos dos de Passos Coelho, nem os de Portas, nem os da contabilidade do "menu de medidas", nem os do secretário de Estado Rosalino, nem os que são dados nas reuniões de concertação social. São todos em milhares de milhões de euros, mas nada bate certo e não é só nas previsões, é nos números com que se parte para as previsões. 

Depois há o uso cada vez mais ofensivo da instabilidade, da chantagem e do medo para pôr as pessoas na ordem. Veja-se o que se passa com os despedimentos da função pública, que, se o Governo pudesse sem violação da lei e da Constituição, seriam às dezenas de milhares, amanhã mesmo. Mas como não pode, usa-se uma combinação de chantagem - as rescisões "por mútuo acordo" - com a colocação de milhares de trabalhadores na absurda (e ilegal) situação de manterem um vínculo ao Estado sem receberem um tostão de salário. E como o Governo percebeu que talvez, mesmo apesar dos inconvenientes pessoais da chamada "mobilidade especial", pudesse haver um número significativo de funcionários que a pudessem aceitar em desespero de causa, e como o objectivo, por detrás dessa tralha verbal tecnocrática, é só despedir, vem agora dizer que "precisamos de transformar o Sistema de Mobilidade Especial num novo Sistema de Requalificação da Administração Pública, com o objectivo de promover a requalificação dos trabalhadores em funções públicas, através de ações de formação". Poderíamos dizer que teria havido um progresso, visto que se pretendia apenas "requalificar" os trabalhadores. Mas se é assim por que é que a frase seguinte é "... e da introdução de um período máximo de 18 meses de permanência nessa condição, pois não é justo para a pessoa, nem é boa administração do Estado, perpetuar uma situação remuneratória que já não tem justificação laboral", ou seja "requalificar" significa despedir? Estes jogos de palavras orwellianos são tão habituais neste Governo como respirar. E eles estão ofegantes.

É uma descrição dura e desapiedada a que faço? Ainda me parece mole e meiga, porque a dimensão de Guignol, de engano, de dolo, de nos querer tomar por tolos, é compulsiva. Não é para levar a sério, mas é muito sério. É muito sério porque disto tudo fica um resíduo, um rasto, uma saliva marcando as paredes, uma babugem qualquer, de medidas, ordens avulsas, leis e directivas, despachos que destroem sem sentido a vida a muitas pessoas que estão a pagar um tributo demasiado caro à vaidade do dr. Portas, ao profetismo ignorante de Passos Coelho, à obstinação tecnocrática de Gaspar, ao servilismo dos deputados do PSD e do CDS, e à cumplicidade de muitos interesses. Esse tributo, que vai ser inútil porque dele não virá qualquer adquirido para os problemas do país, torna este Guignol criminoso. 

E não me venham com desculpas, nada disto tem a ver com o facto de haver uma coligação, nada disto mostra inteligência, mas apenas esperteza, nada disto mostra qualquer preocupação com o país, mas apenas instinto de sobrevivência eleitoral, nada disto mostra qualquer sentido de Estado mas apenas truques de imagem mediáticos, nada disto tem a ver com Portugal nem com os portugueses, mas com um sistema político corrompido pela sua ruptura com o povo e a nação. Guignol por Guignol prefiro o verdadeiro."

domingo, 16 de dezembro de 2012

Segundo Marcelo Rebelo de Sousa...

... Álvaro Santos Pereira conseguiu vergar Bruxelas, mas não consegue fazer o mesmo com Gaspar.
John Le Carré escreveu que é possível derrotar um fanático, porque um fanático tem sempre um segredo escondido que o pode comprometer.
Parece que temos todos de descobrir qual o segredo de Gaspar.

terça-feira, 20 de março de 2012

Senhor, encolhi o país!

" Ser membro do PSD nestas alturas tem que ser um momento particular de perplexidade. Claro que me refiro àqueles membros do PSD que foram atraídos pela muito sui generis e portuguesa fusão de tradições políticas, que ia do liberalismo político à noção de que a política não esgota o campo do humano, até à consciência de que é obrigação do Estado garantir um quantum de justiça social, tudo isso fundido num partido com uma história que era o seu "programa não-escrito". Em momentos decisivos, em 1975, no PREC, na luta de Sá Carneiro contra a hegemonia militar pós-25 de Abril e pelo retorno a uma democracia civilista plena; em 1979, na vitória da AD e na materialização da alternância política; em 1987, com a maioria absoluta subvertendo um défice de governabilidade inscrito na Constituição; em 1989, na revisão constitucional que permitiu a reconstrução de uma economia privada fora do Estado, o PSD teve um papel central. Não me custa admitir que, em 1975 e em 1986, o PS teve um papel mais importante, quer na defesa da democracia, quer na entrada de Portugal na Europa, mas o PSD esteve ao seu lado.

Nem toda a história do PSD é linear, há momentos em que se caiu numa lógica de gestão de interesses no "bloco central", ou se permitiu uma viragem à direita, com Durão Barroso, e com Santana Lopes, roçando-se um populismo e um culto da personalidade, que abriu caminho a uma diluição programática. Por outro lado, a qualidade da governação, que tinha sido um ponto de honra na AD, perdeu-se com o acesso ao poder de muita gente impreparada ou ligada a interesses, que ajudou a retirar ao PSD o prestígio da boa governação. Na oposição, com excepção do momento de patologia de Menezes, quer Marques Mendes, quer Marcelo Rebelo de Sousa, quer Manuela Ferreira Leite tentaram introduzir alguma sanidade interna e algum rigor nas posições, mas todos falharam às mãos da degenerescência oligárquica no seio do aparelho partidário. Permitiu-se, como no PS, uma captura de um partido democrático por um aparelho de poder interno, muitas vezes medíocre, interesseiro e corrupto.

Assim se chegou aos dias de hoje. Em 2012, o PSD no Governo está a gerir apenas uma crise herdada, está a cumprir o seu programa, ou a permitir que se faça outra coisa de natureza muito distinta pouco coerente com o seu programa e a sua tradição? Temo que seja este último caso, e temo que se deixem isolados num vazio incómodo muitos dos militantes que ainda permanecem fiéis ao seu património fundador, que, esse sim, não é "actualizável", sob pena de perda da identidade do partido. Os mais veementes aplausos à acção governativa vêm de poderosos interesses na sociedade portuguesa, que pouco têm a ver com o eleitorado "genético" do PSD ou com os portugueses que é suposto representar pelo seu programa e acção.

A deslocação à direita foi tão violenta, sem rigor nem memória, que hoje um moderado do PSD que tente reformular no actual contexto algumas preocupações que fazem parte do gene do PSD parece um adversário do capitalismo e da liberdade económicos. Olhem que não, olhem que não. Falo, como é óbvio, do gene mesmo e não da sua reconstrução mutante feita para incorporar o memorando da troika como sendo a quinta-essência do programa do PSD.

A falta de equilíbrio do debate político, a sua ausência de memória histórica e ideológica e a sua subserviência às modas, o mimetismo da linguagem mediática e o simplismo redutor dos blogues chegaram a um ponto quase esquizofrénico de que falar com preocupação do desemprego, em vez das maravilhas do empreendedorismo, falar de equidade fiscal, falar de "justiça social", de preocupação com a pobreza, dos direitos dos trabalhadores, da "dignidade do trabalho", tudo isto pareça ser de um esquerdismo muito para lá do BE e do PCP. Mas, foi desta incomodidade face à injustiça, à desigualdade, à exclusão, ao desprezo pelos mais fracos, que os fundadores do PSD, a começar por Sá Carneiro, falaram. O resto vinha depois e era subordinado, instrumental, dependente deste sentido de fundo. Nenhuma deles veria sem repulsa a indiferença olímpica face ao empobrecimento colectivo e ao desemprego, seu principal factor. E nenhum deles tinha a mais pequena hesitação sobre o papel da economia privada, sobre o capitalismo, como instrumento de riqueza, mas a expressão "com sentido social" não era retórica, mas preocupação constante e primeira.

Há várias coisas que se estão a passar sob o manto da austeridade necessária que nada têm a ver nem com a austeridade, nem com a necessidade. Basta ler o que escrevi nos últimos anos para não ter dúvida nenhuma de que de há muito penso que um "ajustamento", como agora se diz, mesmo muito severo, seria inevitável e necessário. Nenhuma dúvida se me colocou de que esse "ajustamento" iria afectar muitos portugueses no seu nível de vida, e que não se podia escapar a esse destino, nem a bem, nem a mal. Foi a mal, com a troika a bater à porta. Mas depois deu-se uma sucessão de acontecimentos, que, esses sim, podiam ter ocorrido de outra maneira. Há várias coisas que estão a acontecer que deveriam merecer uma maior atenção de toda a gente sensata e moderada, a começar por aqueles que ainda chamam social-democrata ao seu partido.

O que está a mudar Portugal é que se está a dar uma enorme deslocação de recursos entre classes e grupos sociais, uns ganhando, outros perdendo. Não é um processo unívoco, mas a sua dimensão deveria preocupar um Governo do PSD. Mas não só não o preocupa como está activamente a contribuir para que isso aconteça. E, se é verdade que todos perdem - e os milhões que os nossos "milionários" perderam e estão a perder são reais e vultuosos -, nem por isso todos estão a perder da mesma maneira e alguns vão poder "sair" da crise com muito mais poder e mais bens, logo, a prazo, com mais dinheiro. Pelo contrário, a destruição da classe média vai deixar a sociedade sem mecanismos de mobilidade social e sem dinâmica.

A ideia de que pode haver uma "democratização da economia", signifique lá isso o que significar, não tem nenhuma correspondência com a realidade. A destruição maciça de empresas, a entrega de participações, bens, recursos à banca, quer directamente, quer por via intermediária do fisco, acompanha o desemprego como meio de embaratecer o trabalho. Em complemento deste processo, e com ele associada, há uma enorme redistribuição de poder, resultado de uma brutal e rápida concentração de poder de decisão e de recursos nas mãos de um grupo cada vez mais pequeno de pessoas, que circulam numa elite que sempre foi muito fechada, mas que agora ainda o é mais. As redes interiores do poder, que circulam entre os grupos económicos, o poder político, a grande advocacia de negócios, alguns think tanks, empresas de consultadoria, conselhos de administração das fundações mais poderosas, reguladores e, de um modo geral, todos os lugares de nomeação estatal, em "grupos de trabalho", "comissões de acompanhamento", etc. estão cada vez mais entregues "sempre aos mesmos". A razão é que as relações de confiança nestes momentos de crise são mais importantes do que tudo o resto, seja a competência e mérito, seja a renovação, sejam mesmo os valores propagados da competição e da liberdade económica. E os "mesmos" já deram provas de lealdade e serviço.

Os "mesmos" estão por isso também a escapar, quando não mesmo a beneficiar da crise. A demagogia reinante obriga toda a gente a dizer que trabalha de graça, mas aliás podiam até todos trabalhar de graça, porque o poder que assumem no exercício de certas funções acompanha-os para o lugar seguinte, que já é bem pouco gratuito. O mundo divide-se, pois, entre os que têm "acesso" e os que não têm, e a concentração do poder económico, o reforço do Estado fiscal, as ondas de eco de procedimentos autoritários e expeditos em nome da crise por todo o sistema bancário, o esbulho puro e simples ou a aceitação de propostas chantagistas para o acesso ao crédito estão a permitir centralizar o poder de decisão. O medo faz o resto.

Os aplausos não enganam. E os aplausos são cada vez mais agressivos, mais abafantes, menos tolerantes. É que oportunidades como esta de moldar o estado, a economia, os trabalhadores, as pessoas a uma mais drástica hierarquia de poder dos "mesmos", não acontecem todos os dias. O que está em jogo são poderosos interesses e encontraram ouvidos atentos e "espírito de serviço". Os "mesmos" desprezam os "políticos", mas não podem viver sem eles. Não ganham eleições, precisam dos "políticos". Para "encolher o país", como no filme."
José Pacheco Pereira
(Versão do Público de 17 de Março de 2012.)

sábado, 31 de dezembro de 2011

Um presente de Natal

Recebi-o dois ou três dias depois do Natal mas foi dos presentes que mais me marcou: oferecido por uma pessoa que não é social-democrata mas que teve a hombridade de dizer " queria-o para mim".
Após ter lido "Por uma social democracia portuguesa", os livros da Maria João Avilez e José Miguel Júdice sobre o homem e o político e os dois volumes de " A Revolução e o Nascimento do PPD" de Marcelo Rebelo de Sousa, este livro vem sintetizar o pensamento político de uns dos mais brilhantes políticos e homens-de-estado da história quase milenar de Portugal.
Se existiram Reis dos quais não nos lembramos sequer do nome - quanto mais da obra! - se tivemos primeiros-ministro que antes de o serem, já sabíamos que não o eram, Francisco Sá Carneiro é e será um exemplo para muitas gerações pelo seu amor à pátria, pela visão política, pelo reformismo que pensava ser fundamental para o crescimento , pela frontalidade e pelo desprendimento pelo poder que sempre lhe permitiu ter liberdade de acção.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Retirado de um Facebook

"Ouvi ontem o Professor Marcelo Rebelo de Sousa a dizer que caso Portugal ganhe à Bósnia, cada jogador recebe um prémio de 100.000 € - Sempre achei esta história dos Prémio uma imoralidade, pois dar um prémio para cumprir um dever é ridículo. Mas agora nesta situação de crise, não só acho imoral como acho uma afronta a todos os Portugueses a quem estão a ser pedidos enorme sacrifícios. Se este prémio se mantiver, eu pela primeira vez na minha vida VOU TORCER PELA BÓSNIA."
José Tomaz Mello Breyner

terça-feira, 5 de julho de 2011

O Iceberg RTP

"Na campanha eleitoral do PSD, a privatização da RTP era apresentada como medida emblemática. Não posso deixar de saudar tal proposta que defendo há mais de dez anos, e que tem conhecido um destino sinuoso dentro do PSD. Cavaco Silva era hostil à privatização, e só com Marcelo de Sousa é que tal proposta foi aceite dentro do PSD. Logo a seguir, Durão Barroso manteve-a de forma mitigada, mas, mal chegou ao Governo, abandonou-a de imediato. Pior ainda, deu à RTP o que ela sempre quis: atribuiu-lhe uma indemnização compensatória pelo "serviço público" a que a esquerda bate palmas ainda hoje.


Conheço de mais todos os argumentos que justificam a existência de um sector público de comunicação social, em particular por comparação com outros países europeus, assentes numa justificação histórica que perdeu muito do seu sentido, e em exemplos e em contextos muito diferentes. Se alguém pensa que a RTP é a nossa BBC, nem conhece a BBC, nem as controvérsias sucessivas que o seu controlo político tem suscitado. Não há país em que haja televisão pública em que não haja também uma contínua controvérsia sobre o seu papel, e em que os argumentos em sua defesa não sejam estatistas, seja em versão de esquerda, seja de direita.

Outra coisa é ter ou conceber a existência de um "serviço público" de comunicação que pode e deve ser concertado com os operadores privados, pode implicar linhas de financiamento no âmbito da cultura, ou dos negócios estrangeiros (a função da RTP África é geoestratégica), e que necessita de ser definido sempre de uma forma minimalista. Foi, aliás, a defesa deste "serviço público mínimo" o teor da minha primeira intervenção parlamentar em 1987 e, como já escrevi, há muito anos, o serviço público é uma coisa, os canais públicos são outra.

A presença do Estado na comunicação social é muito vasta e está longe de poder ser reduzida apenas à RTP. O sector Estado inclui no sector de televisão, quer em sinal aberto, por cabo ou online, a RTP1, RTP2, RTP Madeira, RTP Açores, RTP Internacional, RTP África, RTPN, RTP Memória e RTP Mobile. Na rádio inclui, quer em sinal aberto ou online, a Antena 1, Antena 2, Antena 3, RDP Internacional, RDP África, RDP Madeira-Antena 1, RDP Madeira-Antena 3, RDP Açores-Antena 1, Rádio Lusitânia, Rádio Vivace, Rádio Antena 1 Vida, Antena 3 Rock, Antena 3 Dance, Antena 1 Fado. Tem igualmente uma participação maioritária na Lusa. Em bom rigor deveria acrescentar-se a esta lista os órgãos de comunicação social detidos ou participados pelos governos regionais e pelas autarquias. Não existe também qualquer definição explícita e clara do que é o serviço público, nele cabendo desde o futebol, os concursos, espectáculos musicais, telenovelas, música rock, programas de variedades, e pelos vistos, o Preço Certo. Isto significa que o Estado detém o maior grupo de comunicação social português.

O financiamento deste sector público na comunicação social foi nos últimos anos mais vultuoso do que o de qualquer empresa pública. A RTP é financiada essencialmente por fundos públicos com origem quer na Indemnização Compensatória quer pela Contribuição Audiovisual, que se paga junto com a electricidade. Cegos e surdos pagam a Contribuição Audiovisual, mesmo que não vejam televisão ou ouçam rádio.

Entre 2003 e 2009, a RTP recebeu do Estado cerca de 2000 milhões de euros, o que dá cerca de 300 milhões por ano. Em 2010 recebeu 308 milhões de euros, muito mais do que recebe a CP, a Carris, a STCP, o Metro, a Refer, todos os teatros nacionais e todas as indemnizações compensatórias nos transportes locais, regionais, de barco, camionagem, avião, etc. (valores da Resolução do Conselho de Ministros n.º 96/2010). Só a RTP recebeu em 2010 mais de cinco vezes o que recebeu a CP.

Ora, quer no programa eleitoral, quer no programa de Governo, a fórmula relativa à privatização da RTP é muito ambígua, como aliás é, por derivação, a fórmula quanto à rádio. No programa do PSD diz-se que "o universo de rádios da Antena 1, 2 e 3 seguirá os mesmos princípios gerais a aplicar à RTP"; e no programa do Governo está "a Antena 1, 2 e 3 seguirá os mesmos princípios gerais a aplicar à RTP." O único caso em que a decisão de privatização é clara é a Lusa, embora a fórmula vaga "momento oportuno" também aqui esteja.

Voltemos à televisão. No programa do PSD diz-se: "Ir-se-á proceder, em momento oportuno, à alienação ao sector privado de um dos canais públicos comerciais actuais. Quanto ao outro canal, hoje comercial, ficará na esfera pública e será essencialmente orientado para um novo conceito de serviço público." No Programa do Governo há uma outra fórmula: "O Grupo RTP deverá ser reestruturado de maneira a obter-se uma forte contenção de custos operacionais já em 2012 criando, assim, condições tanto para a redução significativa do esforço financeiro dos contribuintes quanto para o processo de privatização. Este incluirá a privatização de um dos canais públicos a ser concretizada oportunamente e em modelo a definir face às condições de mercado." Em ambos os casos há uma fórmula que implica apenas a privatização de um só canal, o que levanta o problema de se saber se esse canal é a RTP1, o único caso em que tem sentido falar de "privatização da RTP" como medida com significado político. Se for a RTP2, tudo permanece na mesma em termos da presença do Estado, ou seja, não há verdadeira privatização da televisão.

Porém, quando se lêem os dois programas a diferença vai mais longe. No programa do PSD um canal comercial (RTP1 ou 2) será privatizado, o outro será "orientado para um novo conceito de serviço público", o que não se sabe muito bem o que é. No Programa do Governo um dos canais públicos será privatizado (admito que "público" aqui significa em sinal aberto, porque a RTP África, RTP N, RTP Memória são também canais públicos) e não se diz nada sobre o destino do que sobra. Em ambos os casos o tempo é o "oportuno" (tempo bem menos preciso do que o de outras privatizações), mas acrescenta-se "em modelo a definir face às condições de mercado", e aqui é que está a frase- chave que não aparece no programa eleitoral e que muda tudo.

Sabemos o que aconteceu entretanto, embora se esteja longe de saber tudo. Sabemos que os donos da SIC (declaração de interesse, participo em dois programas da SIC) e da TVI, afirmaram com veemência que a privatização de um canal aberto da RTP criaria uma situação de falência no sector, dada a escassez da publicidade gerada pela crise, tornando "impossível" a viabilidade de três canais privados. Sabemos também que os grupos de comunicação social que não têm televisão ligados à Ongoing e à Cofina pretendem o novo canal. Aparentemente a fórmula "face às condições de mercado" significa que a posição e os interesses da SIC e da TVI foram tomados em conta e que, como "as condições de mercado" não vão mudar tão cedo, também não haverá privatização da RTP, naquilo que conta, a RTP1.

Existe uma outra alternativa, o fim do sector de comunicação social do Estado, por pura extinção. Isso implica definir com toda a clareza o serviço público a contratar e a multiplicidade das suas novas "encomendas", e defender os direitos dos trabalhadores. Não percebo que um Estado que fecha hospitais, permite a morte lenta dos Estaleiros de Viana, que, no fundo considera normal, e não possa acabar com a RTP se entende que as "condições de mercado" não permitem a sua privatização, o que aliás ainda está por demonstrar.

A razão principal pela qual defendo o fim da RTP e de todo o sector público de comunicação social tem sido sempre a mesma: não cabe, dentro do que entendo serem funções do Estado, ter órgãos de comunicação social. A questão dos custos e o papel perverso de órgãos de comunicação social com comando político é igualmente relevante, mas para mim o que é essencial é considerar que não há nenhuma razão para o Estado ter órgãos de comunicação social numa sociedade aberta e livre, em que existem grupos privados de comunicação social, mesmo no sistema de competição imperfeita actual. Agora, que toda a gente usa o qualificativo liberal a torto e a direito, aqui tem uma genuína posição liberal, liberal de liberdade."

José Pacheco Pereira, (Versão do Público, 3 de Julho de 2011.)